A chamada MP do Agro[1] trouxe importantíssimas inovações à Lei da CPR[2] no tocante a alienação fiduciária de produtos agrícolas[3]. São novidades que prometem deixar a alienação fiduciária tão atrativa para o Agro quanto ela é para o Mercado Financeiro e de Capitais, para quem a garantia fiduciária sobre bens móveis (em especial automóveis) é uma realidade consolidada, com farta jurisprudência formada a respeito. No entanto, ao transportar este instituto para o campo do Agronegócio, alguns cuidados são necessários, dadas as especificidades da atividade agrícola em confronto com as decisões dos tribunais estaduais e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A primeira questão envolve aquilo que é o verdadeiro “ponto de apoio de Arquimedes” para a execução da alienação fiduciária: a prova do envio de comunicação formal ao devedor informando acerca do atraso no cumprimento das obrigações garantidas (p.ex. a falta de entrega dos produtos rurais ou do pagar certo valor) é requisito essencial, de acordo com o STJ, para quem a comprovação da notificação pessoal a respeito da falta de cumprimento da obrigação “é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente” (Súmula 72).
Nas discussões sobre como a notificação pessoal deve ser realizada, despontam precedentes sobre a possibilidade de notificação pessoal através de carta com A.R. (aviso de recebimento). E, dentro deste universo, é particularmente importante para o Agronegócio os casos em que se discutem os critérios que devem ser considerados para que a Justiça entenda que a notificação foi efetivamente realizada e que levam em conta situações relacionadas a endereços urbanos (p.ex. recebimento pela portaria do prédio no endereço indicado, alteração de endereço etc.).
Por outro lado, nas circunstâncias em que o produtor rural tiver seu endereço na zona rural (na fazenda, sítio etc.) a necessidade de realização de notificação pessoal se torna um aspecto mais desafiador, pois, normalmente, os Correios não atendem as zonas rurais dos municípios, situação que, de plano, impossibilita a utilização das cartas com A.R. para o envio de qualquer notificação formal.
Para superar esta dificuldade, devem ser consideradas outras formas de notificação pessoal, admitidas pelo ordenamento jurídico (ainda que a carta com A.R. seja a única modalidade de notificação prevista expressamente). Neste sentido, admite-se a realização de notificações através do protesto, da notificação extrajudicial (através de cartório) e mesmo com outras formas menos usuais[4], conforme decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná quando declarou que “o credor fiduciário deve aviar outros meios disponíveis para a sua constituição em mora, de modo a não deixar dúvidas de que foi cientificado do inadimplemento da obrigação” (Tribunal de Justiça do Paraná – Agravo de Instrumento n. 1.514.517-0).
De forma complementar, deve ser considerada a inclusão de cláusulas detalhadas no contrato de alienação fiduciária que tratem de como o produtor deve ser notificado, admitindo-se que as partes determinem contratualmente todas as questões relacionadas, como a forma de notificação, os prazos e interpretações, conforme autorizado pela lei.
A segunda situação de risco decorrente da aplicação de precedentes urbanos ao Agronegócio nos casos de alienação fiduciária, refere-se ao risco de caracterização do produto rural como sendo um “bem de capital essencial à manutenção da atividade empresarial” nos termos do artigo 6º, § 7º-A da Lei da Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005), o que faz com que tais ativos não possam ser apreendidos pelo credor enquanto vigente o chamado stay period.
Stay period é o nome dado ao período de 180 dias, prorrogável por uma única vez por outros 180 dias (artigo 6º, § 4º da Lei 11.101/2005), durante o qual todas as ações e execuções contra o devedor em recuperação judicial ficarão suspensas. No caso da alienação fiduciária de commodities agrícolas, se a produção for enquadrada dentro do conceito de bem de capital essencial, a garantia manterá sua característica de ser extraconcursal e não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e falência, mas a ação judicial para buscar o produto ficará suspensa até o final do stay period.
Para evitar esse risco, o primeiro cuidado a ser tomado é afastar tal enquadramento expressamente, conforme disposição da Lei da CPR que determina que a cédula deve, obrigatoriamente, ter cláusula dispondo sobre a essencialidade ou não dos bens vinculados. Trata-se de um cuidado importante para aqueles casos para os quais não se aplica o dispositivo da Lei das CPR que exclui dos efeitos da recuperação judicial os bens e créditos vinculados às cédulas físicas emitidas em operações de barter ou em razão de adiantamento recebido pelo emitente.
Adicionalmente a este cuidado específico para as CPRs, é preciso atentar para que o conceito jurídico de “bem de capital” seja explicitado em todos os documentos firmados. Este conceito pode ser encontrado em Acórdão paradigmático do STJ:
“(…) o objeto de comercialização da empresa em recuperação judicial, no que se insere os bens de consumo que são por ela produzidos, não se confunde com os ‘bens de capital’ (imóveis, maquinários, utensílios) necessário à produção daquele. É dizer: o resultado da produção, objeto de comercialização, não se confunde com os bens utilizados no processo produtivo (bens de capital)” (Conflito de Competência 153.473-PR).
Assim, além da necessidade de se comparar a alienação fiduciária de produtos rurais com outras figuras jurídicas similares afim de se comparar prós e contras, aqueles que efetivamente acabarem por escolher a garantia fiduciária precisarão estar atentos para todo o cenário jurisprudencial já formado, valendo a máxima dos advogados americanos: the devil is in the details.
[1]Lei 13.986/2020
[2] Lei 8.929/1994
[3] Para facilitar o desenvolvimento do texto, vou utilizar a expressão “produto agrícola” ou “produto rural” para me referir a tudo o que pode ser objeto da garantia de alienação fiduciária nos termos do conceito do § 2º do Art. 1º da Lei 8.929/1994: “Para os efeitos desta Lei, produtos rurais são aqueles obtidos nas atividades: I – agrícola, pecuária, de floresta plantada e de pesca e aquicultura, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico, inclusive quando submetidos a beneficiamento ou a primeira industrialização; II – relacionadas à conservação de florestas nativas e dos respectivos biomas e ao manejo de florestas nativas no âmbito do programa de concessão de florestas públicas, ou obtidos em outras atividades florestais que vierem a ser definidas pelo Poder Executivo como ambientalmente sustentáveis”.
[4] Utilização do telegrama: STJ – Ag.Int. no Recurso Especial Nº 1821119 – PR
Olavo Barcellos Guarnieri
Sócio da área de Agronegócios do OLP Advogados
olavo@oliveirapaolucci.com.br
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